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Almeida Garrett
debaixo de um carvalho secular, à luz daquele sol baço e branco do
nublado céu de Albion... ou à noite com os pés no fender16 ,a chaleira a
ferver no fogão, e sobre a banca o cristal antigo de um bom copo lapidado
a luzir-me alambreado com os doces e perfumados resplendores do old-
sack17; enquanto o fogão e os ponderosos castiçais de cobre brunido
projectam no antigo teto almofadado, nos pardos compartimentos de
carvalho que forram o aposento, aquelas fortes sombras vacilantes de que
as velhas fazem visões e almas do outro mundo, de que os poetas - poetas
como Shakespeare - fazem sombras de Banco, bruxas de Macbeth, e até a
rotunda pança e o arrastante espadagão do meu particular amigo Sir John
Falstaft o inventor das «legítimas consequências», o fundador da grande
escola dos restauradores caturras, dos poltrões pugnazes que salvam a
pátria de parola e que ninguém os atura em tendo as costas quentes.
Oh Falstaff, Falstaff! eu não sei se tu és maior homem que Sancho
Pança. Creio que não. Mas maior pança tens, mais capacidade na pança
tens. Quando nossos avós renegaram de S. Tiago por castelhano18 perro,
e invocaram a S. Jorge, tu vieste, ó Falstaff, em sua comitiva de
Inglaterra, e aqui tomaste assento, aqui ficaste, e foste o patriarca dessa
imensa progénie de Falstaffs que por aí anda.
Este importante ponto da nossa história, da demissão de S. Tiago e
da vinda de S. Jorge de Inglaterra com Sir John Falstaff por seu homem
de ferro esta grande descoberta arqueológica que tanta coisa moderna
explica, como a fiz eu? Indo aos sítios mesmos, estudando ali os antigos
exemplares: que é a minha doutrina,
Em tudo, para tudo é assim, Chegou um dia um inglês a Paris:
inglês legitimo e cru, virgem de toda a corrupção continental; calça de
ganga, sapato grosso, cabelo de cenoira, chapéu filado na cova-do-ladrão.
Era entusiasta de Heloísa e Abelardo, foi-se ao Pére-Lachaise, chegou ao
túmulo dos dois amantes, tirou um livrinho da algibeira, pôs-se a ler
aquelas cartas do Paracleto que têm endoidecido muito menos
excêntricas cabeças que a do meu inglês puro-sangue. Não é nada;
excitou-se a tal ponto que entrou a correr como um perdido, bradando
por um cónego da Sé que lhe acudisse, que se queria identificar com o
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Viagens na Minha Terra
seu modelo, purificar a sua paixão, ser enfim um completo ou um
incompleto Abelardo.
Eu não sou susceptível de tamanho entusiasmo, sobretudo desde
que dei a minha demissão de poeta e cai na prosa. Mas aqui têm o que
me sucedeu o outro dia. Tinha estado às voltas com o meu Bentham, que
é um grande homem por fim de contas o tal quacre, e são grandes livros
os que ele escreveu: cansou-me a cabeça, peguei no Camões e fui para a
janela. As minhas janelas agora são as primeiras janelas de Lisboa, dão
em cheio por todo esse Tejo. Era uma destas brilhantes manhãs de
Inverno, como as não há senão em Lisboa. Abri os Lusíadas à ventura,
deparei com o canto IV e pus-me a ler aquelas belíssimas estâncias
E já no porto da ínclita Ulisseia...
Pouco a pouco amotinou-se-me o sangue, senti baterem-me as ar-
térias da fronte... as letras fugiam-me do livro, levantei os olhos, dei com
eles na pobre nau Vasco da Gama que aí esta em monumento-caricatura
da nossa glória naval... E eu não vi nada disso, vi o Tejo, vi a bandeira
portuguesa flutuando com a brisa da manhã, a torre de Belém ao longe...
e sonhei, sonhei que era português, que Portugal era outra vez Portugal.
Tal força deu o prestigio da cena as imagens que aqueles versos
evocavam!
Senão quando, a nau que salva a uns escaleres que chegam... Era o
ministro da marinha que ia a bordo.
Fechei o livro, acendi o meu charuto, e fui tratar das minhas
camélias.
Andei três dias com ódio à letra redonda.
Mas de tudo isto o que se tira, a que vem tudo isto para as minhas
viagens ou para o episódio do vale de Santarém em que há tantos
capítulos nos temos demorado?
Vem e vem muito: vem para mostrar que a história, lida ou contada
nos próprios sítios em que se passou, tem outra graça e outra força; vem
para te eu dar o motivo por que nestas minhas viagens, leitor amigo, me
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Almeida Garrett
fiquei parado naquele vale a ouvir do meu companheiro de jornada e a
escrever, para teu aproveitamento, a interessante história da menina dos
rouxinóis, da menina dos olhos verdes, da nossa boa Joaninha.
Sim, aqui tenho estado estendido no chão, as mulinhas pastando na
relva, os arneiros fumando tranquilamente sentados, e as últimas horas
de uma longa e calmosa tarde de Julho a cair e a refrescar com a aragem
precursora da noite.
Mas basta de vale, que é tarde. Olá! Venham as mulinhas e mon-
temos. Picar para Santarém, que no ínclito alcácer del-rei D. Afonso
Henriques nos espera um bom jantar de amigo e não é só a vaca e riso
de Fr. Bartolomeu dos Mártires'9, mas um verdadeiro jantar de amigo,
muito menos austero e muito mais risonho.
Por quê? Já se acabou a história de Carlos e de Joaninha? diz
talvez a amável leitora.
Não, minha senhora responde o autor mui lisonjeado da
pergunta. Não, minha senhora, a história não acabou, quase se pode
dizer que ainda ela agora começa; mas houve mutação de cena. Vamos a
Santarém, que lá se passa o segundo ato.
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Viagens na Minha Terra
CAPÍTULO XXVII
Chegada a Santarém. Olivais de Santarém. Fora-de-Vila. Simetria que não é para
os olhos. Modo de medir os versos da Bíblia. Arquitectura pedante do século XVII.
Entrada no Alcáçova.
Eram as últimas horas do dia quando chegamos ao princípio da
calçada que leva ao alto de Santarém. A pouca frequência do povo, as
hortas e pomares mal cultivados, as casas de campo arruinadas, tudo
indicava as vizinhanças de uma grande povoação descaída e desampa-
rada. O mais belo, contudo, de seus ornatos e glórias suburbanas ainda o
possui a nobre vila, não lho destruíram de todo; são os seus olivais. Os
olivais de Santarém, cuja riqueza e formosura proverbial é uma das
nossas crenças populares mais gerais e mais queridas!... os olivais de
Santarém lá estão ainda. Reconheceu-os o meu coração e alegrou-se de
os ver; saudei neles o símbolo patriarcal da nossa antiga existência.
Naqueles troncos velhos e coroados de verdura, figurou-se-me ver, como
nas selvas encantadas do Tasso, as venerandas imagens de nossos
passados; e no murmúrio das folhas, que o vento agitava a espaços o
triste suspirar de seus lamentos pela vergonhosa degeneração dos
netos...
Estragado como os outros, profanado como todos, o olival de
Santarém é ainda um monumento.
Os povos do meio-dia, infelizmente, não professam com o mesmo
respeito e austeridade aquela religião dos bosques, tão sagrada para as
nações do norte. Os olivais de Santarém são excepção: há muito pouco
entre nós o culto das arvores.
Subimos, a bom trotar das mulinhas, a empinada ladeira eu
alvoraçado e impaciente por me achar face a face com aquela profusão de
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